domingo, 8 de julho de 2012

Vocação e a Greve dos Médicos

Vocação

Muito se tem falado a propósito da greve dos médicos. Uma palavra ficou-me na cabeça...vocação.


E é precisamente esta palavra que me motivou a escrever… e a recuar no tempo…

Segundo os meus pais não teria mais de 4 anos quando, após um dos inúmeros visionamentos de programas médicos  que passavam na rtp, disse: “quero ser médico….mas como aqueles…de cara tapada”. Referia-me aos Cirurgiões que apareciam no ecrã e que me suscitavam um fascínio enorme.

Não valorizaram muito…”daqui a pouco vai dizer que quer ser bombeiro ou astronauta como os outros miúdos”.

Mas não… essa ideia do “médico de cara tapada” ficou tatuada no íntimo daquela pequena criança. Seria repetida com precisão suíça sempre que alguém da família ou conhecido perguntava o que queria ser quando fosse grande…”quero ser médico de cara tapada”.

Nunca vacilei na resposta a dar à pergunta: “ o que queres ser quando fores grande?”
Era sempre a mesma…sendo tão coerente que as pessoas deixaram de perguntar.

Chegado à faculdade  de medicina voltaram a fazer-me a pergunta numa aula.De entre respostas de colegas tão variadas como “clínica geral” a “medicina legal” eu dei a minha…”CIRURGIA”.

Confesso que a dei sem saber bem o significado da resposta. Não sabia bem o que significava ser “cirurgião”. Mas mantinha-me estranhamente coerente na resposta.

Acabado o curso iniciei o internato geral. As rotações sucediam-se e eu sentia-me atraído por  pequenas partes das especialidades… do diagnóstico diferencial da medicina interna, das crianças e bebés na pediatria, da proximidade na medicina geral e familiar… mas, não me identificava completamente. Faltava qualquer coisa. Dois meses antes de escolher a especialidade iniciei a rotação de cirurgia geral. E algo mudou. A pergunta que me perseguiu durante tantos anos voltou, bem como a resposta ….” CIRURGIA”.

Na Cirurgia identificava-me com a forma de estar, com a forma de pensar e o bloco exercia uma força irresistível. Sentia-me em casa.
E voltas e mais voltas a vida deu e parece que aquela criança foi profética….”eu quero ser médico de cara tapada”.

O acto de pegar num bisturi e de abrir um ser humano foi lentamente fazendo parte de mim. Sentia-me mudar e amadurecer enquanto médico e homem. Sentia-me realizado e orgulhoso cada vez que dava um novo passo , cada vez que conseguia fazer mais e melhor.

A cirurgia tem o dom também de nos conseguir castigar a alma, e de,  durante a noite invadir o sono obrigando-nos a rever cada ponto dado…cada anastomose feita…cada decisão tomada.

Não obstante, e apesar de não ganhar nenhuma fortuna (1300 euros/mês), de trabalhar mais do que deveria, de não descansar o suficiente e de ter a vida de seres humanos nas mãos…assisto cada vez mais a situações em que sou insultado no serviço de urgência, vejo a classe médica a ser alvo de todo o tipo de ataques pela opinião pública, pelas administrações hospitalares, pelo governo…

Parece que afinal eu vim para medicina por causa de dinheiro. Que sou um mercenário. Que não me interesso pelos doentes. Que vim para medicina pelo “estatuto”. Que não tenho “VOCAÇÃO”.

Parece que afinal aquela criança de 4 anos  não tem vocação para ser médica…que é melhor ela  ir para uma qualquer juventude, de um qualquer partido…

Vocação deve ser isso…

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