segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

A primeira vez...

A primeira vez costuma ser um momento marcante na nossa vida

A primeira vez que vi "a vida passar à frente dos olhos" foi numa queda aparatosa de bicicleta, ainda criança.
Fiquei no final deste fugaz  lapso de julgamento, a olhar de baixo para cima, para um pára-choques de um volkswagen Golf.
Saí incólume, com arranhões no corpo...mas com feridas profundas na alma da vergonha e susto.
Ainda me lembro do azul da tinta da carroçaria e dos números da matrícula.

A actividade clínica também está cheia destas "primeiras vezes”

Mas há uma que marca mais do que todas as outras.
A primeira vez... que morre um doente nas nossas mãos…

Lembro-me do mês, do dia, da chuva que caía...
Na "gaveta" do gabinete encontrava-se uma ficha de urgência reluzindo o fluorescente amarelo da triagem de Manchester.

Senhor A,S,, 68 anos, hemorragia digestiva.

Por trás desta ficha de urgência escondia-se uma cara afável e de sorriso fácil. 
Contou-me que nessa manhã tinha ficado assustado porque tinha vomitado sangue...muito sangue.
 Já tinha tido estado internado por uma úlcera  e portanto era já  experiente na matéria. 
O filho acompanhava-o e mostrava, nos gestos e no olhar, a preocupação e o amor que todos os filhos deviam ter pelos pais.

Apesar da simpatia o senhor A. estava visivelmente cansado e pálido...

Estava taquicárdico e hipotenso. Iniciou fluidoterapia...colheu análises...inibidor da bomba de protões...

As tensões subiram...a taquicardia baixou...

Tudo parecia estar a voltar à normalidade...e fui  informar o filho de que o pai tinha perdido bastante sangue, mas que estava a responder bem ao tratamento...
Só se estava a aguardar que fosse fazer endoscopia...

O filho agradeceu-me imenso a atenção e voltei à “gaveta”…ver que mais me reservava essa manhã.

Durante a observação de um doente sou chamado à sala de emergência...

O sr. A, tinha voltado a sangrar...e muito...

Quando cheguei à sala a palidez da cara afável do sr.A. assustou-me....parecia cera.

Ele estava desorientado e, em câmara lenta... fechou os olhos muito devagar  e deixou de responder.

Olhei para o monitor e nenhum dos números que via pareciam reais....
Sentia-me nadar contra a corrente...

Mas eu acreditava num final feliz...mesmo quando o Sr.A. entrou em paragem cardíaca e iniciámos a reanimação.

Eu acreditava que íamos conseguir...que tudo aquilo teria um final feliz...que era possível… como se fosse algo saído de uma série médica televisiva americana... sempre cheia de actos heróicos e decisões brilhantes que terminavam num final feliz...

Mas não era possível...e não foi…

Os minutos iam-se somando...e uma certeza começou a pesar nos nossos olhos, nas nossas cabeças e nos nossos braços…

A certeza de que o Sr.A. já não voltava... que este episódio não era dos que tinha final feliz…

Faltava a coragem de dizer o que toda a gente pensava...até que o bom senso imperou…e se parou a reanimação…declarando-se o óbito…

O cansaço da reanimação  era bem menor que o vazio que crescia dentro de mim… enquanto as mãos caíam ao longo do corpo...

Desorientado, saí da sala de emergência...ainda com as luvas calçadas...tingidas de sangue...sangue do Sr.A.

Do outro lado da porta da sala de emergência estava o filho do Sr.A.

Naquele momento não era capaz de dizer nada...sentia-me envergonhado...sentia-me vazio...derrotado.

Saí da urgência para o exterior, e o frio e a chuva de inverno receberam-me como se recebe um velho conhecido...

Sentei-me nas escadas...ainda com as luvas calçadas...sem saber o que pensar...
Sentia-me perdido...pequeno...incapaz...impotente...

A cara do Sr.A. à chegada ao serviço de urgência, sorridente e afável, parecia estar carimbada na minha cabeça...e o vazio apertava...

Pouco a pouco esse vazio e aperto no "estômago" aliviaram...e regressei à sala de emergência...e dei a notícia ao filho do Sr.A. 

Nesse momento o aperto no "estômago" voltou, e mais forte... piorando enquanto assistia à perda de controlo emocional, de quem acabou de perder uma boa parte de si.

Sentia uma enorme vontade de chorar com ele...


Sim... é mesmo verdade...


Uma primeira vez nunca se esquece…


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